(amigo-amado-irmão, físico, professor, comunista e quase pró-feminista...)








Para o imigrante, a chegada à São Paulo pode ser humilhante, quase insuportável; ele agüenta — que jeito, se veio para agüentar e comer? Engole comida e desaforos. Mas nem por isso a humilhação é aceita como natural, não se enganem, os suplícios ficam arquivados, transmutam-se em vinganças ou sabedorias.
Domingas, por exemplo, que veio pra cá há décadas: baiana, ainda feia, porque pobre, ia para a escola à noite de barriga vazia, escolhia entre pagar o transporte ou a comida.
Agora nós a vemos diante das vitrines de uma certa Casa Vogue, loja de moda cara da Avenida Paulista.
No vidro que a separava das roupas não via a si mesma, dentes precisando de trato, o cabelo desde sempre chamado de ruim por outras mulatas como ela; emitia uma impressão de sujeira que a pobreza confere a certos recém-chegados em cidade grande, não importa quanto sabão o portador use, anterior à pobreza limpa, esta, já um princípio de integração.
Diante dos trajes que, um só, lhe pagaria meses de refeições, Domingas caiu em êxtase digno de Santa Teresa, perdoe-me a doutora da Igreja. Esqueceu-se de si mesma, diante daquele museu do dinheiro, e entrou no transe das impossibilidades que, com dois ou três suspiros, ficariam poéticas, mas não dá para entrar nessa, honestamente: distâncias culturais, abismos de grana, São Paulo, uma roupa com jeito europeu a meio metro e inalcançável. Vixe! Enfeitar a carência?
Uma funcionária da Vogue veio de lá de dentro como um raio, interrompendo os 60 segundos de contemplação: “Sai daqui, você não pode ficar aqui, faça o favor de ir embora”. Do topo de sua condição de empregada da loja, nordestina já corrigida pelo salário nem tão alto, pousada na sua integração à cidade, enxotou sua irmã de espécie e geografia, como a um vira-lata que invade um banquete.
E, entredentes, “Xô!”, mandou-a embora do lugar público, da calçada. Porque a riqueza e seus prepostos mandam e privatizam. Hannah Arendt não estava por perto para lamentar a transformação cada vez maior do espaço público em privado.
Sem Arendt como defensora diante da funcionária da Vogue, Domingas foi chorar em Cidade Patriarca, que nem era lugar quente. Nunca entendi por que a recomendação de chorar em lugar quente.
A Casa Vogue fechou, não por praga de Domingas. Sinto dizer que não sei o que houve com ela, se São Paulo a integrou ou a expulsou. Mas seus sucessores estão por aqui.
Outro dia vi e ouvi um deles, Ferréz, escritor jovem que mora no Capão Redondo, mais branco que Domingas e já mais bem-nutrido. Está em outra etapa. Dizia que seus textos querem a revolução e que se não conseguir revolucionar com eles, pegará um rifle.
Domingas, por exemplo, que veio pra cá há décadas: baiana, ainda feia, porque pobre, ia para a escola à noite de barriga vazia, escolhia entre pagar o transporte ou a comida.
Agora nós a vemos diante das vitrines de uma certa Casa Vogue, loja de moda cara da Avenida Paulista.
No vidro que a separava das roupas não via a si mesma, dentes precisando de trato, o cabelo desde sempre chamado de ruim por outras mulatas como ela; emitia uma impressão de sujeira que a pobreza confere a certos recém-chegados em cidade grande, não importa quanto sabão o portador use, anterior à pobreza limpa, esta, já um princípio de integração.
Diante dos trajes que, um só, lhe pagaria meses de refeições, Domingas caiu em êxtase digno de Santa Teresa, perdoe-me a doutora da Igreja. Esqueceu-se de si mesma, diante daquele museu do dinheiro, e entrou no transe das impossibilidades que, com dois ou três suspiros, ficariam poéticas, mas não dá para entrar nessa, honestamente: distâncias culturais, abismos de grana, São Paulo, uma roupa com jeito europeu a meio metro e inalcançável. Vixe! Enfeitar a carência?
Uma funcionária da Vogue veio de lá de dentro como um raio, interrompendo os 60 segundos de contemplação: “Sai daqui, você não pode ficar aqui, faça o favor de ir embora”. Do topo de sua condição de empregada da loja, nordestina já corrigida pelo salário nem tão alto, pousada na sua integração à cidade, enxotou sua irmã de espécie e geografia, como a um vira-lata que invade um banquete.
E, entredentes, “Xô!”, mandou-a embora do lugar público, da calçada. Porque a riqueza e seus prepostos mandam e privatizam. Hannah Arendt não estava por perto para lamentar a transformação cada vez maior do espaço público em privado.
Sem Arendt como defensora diante da funcionária da Vogue, Domingas foi chorar em Cidade Patriarca, que nem era lugar quente. Nunca entendi por que a recomendação de chorar em lugar quente.
A Casa Vogue fechou, não por praga de Domingas. Sinto dizer que não sei o que houve com ela, se São Paulo a integrou ou a expulsou. Mas seus sucessores estão por aqui.
Outro dia vi e ouvi um deles, Ferréz, escritor jovem que mora no Capão Redondo, mais branco que Domingas e já mais bem-nutrido. Está em outra etapa. Dizia que seus textos querem a revolução e que se não conseguir revolucionar com eles, pegará um rifle.