24 de set. de 2007

PRECISO, PARA

Marina Colassanti

Preciso que um barco atravesse o mar
lá longe
para sair dessa cadeira
para esquecer esse computador
e ter olhos de sal
boca de peixe
e o vento frio batendo nas escamas.
Preciso que uma proa atravesse a carne
cá dentro
para andar sobre as águas
deitar nas ilhas e olhar de longe esse prédio
essa sala
essa mulher sentada diante do computador
que bebe a branca luz eletrônica
e pensa no mar.

PS: A primavera trouxe o sol, mas o domingo trouxe a segunda...

SEMPRE, DE VEZ EM QUANDO

Leila Míccolis

Toda vez que amanheço
de porre, sem ter bebido,
é prenuncio de tempestades.
Os calos não doem
com a mudança do tempo,
mas meu coração dispara
e o olfato fica mais aguçado
que faro de perdigueiro.
Nestas horas,
não adianta ninguém me dizer
que "viver é experimentar",
porque o máximo que eu consigo
é avaliar as avarias
causadas pelos arpões.

PS: Odeio segundas-feiras...

20 de set. de 2007

ESCUTATÓRIA

Sempre vejo anunciados cursos de oratória. Nunca vi anunciado curso de escutatória.
Todo mundo quer aprender a falar. Ninguém quer aprender a ouvir. Pensei em oferecer um curso de escutatória. Mas acho que ninguém vai se matricular. Escutar é complicado e sutil.

Diz o Alberto Caeiro que "não é bastante não ser cego para ver as árvores e as flores. É preciso também não ter filosofia nenhuma". Filosofia é um monte de idéias, dentro da cabeça, sobre como são as coisas. Aí a gente que não é cego abre os olhos. Diante de nós, fora da cabeça, nos campos e matas, estão as árvores e as flores.
Ver é colocar dentro da cabeça aquilo que existe fora. O cego não vê porque as janelas dele estão fechadas. O que está fora não consegue entrar. A gente não é cego. As árvores e as flores entram. Mas - coitadinhas delas - entram e caem num mar de idéias.
São misturadas nas palavras da filosofia que mora em nós. Perdem a sua simplicidade de existir. Ficam outras coisas. Então, o que vemos não são as árvores e as flores. Para se ver é preciso que a cabeça esteja vazia.

Parafraseio o Alberto Caeiro: "Não é bastante ter ouvidos para se ouvir o que é dito. É preciso também que haja silêncio dentro da alma". Daí a dificuldade: a gente não agüenta ouvir o que o outro diz sem logo dar um palpite melhor, sem misturar o que ele diz com aquilo que a gente tem a dizer. Como se aquilo que ele diz não fosse digno de descansada consideração e precisasse ser complementado por aquilo que a gente tem a dizer, que é muito melhor.

Nossa incapacidade de ouvir é a manifestação mais constante e sutil da nossa arrogância e vaidade: no fundo, somos os mais bonitos... Tenho um velho amigo, Jovelino, que se mudou para os Estados Unidos, estimulado pela revolução de 64. Pastor protestante (não "evangélico"), foi trabalhar num programa educacional da Igreja Presbiteriana USA, voltadopara minorias. Contou-me de sua experiência com os índios. As reuniões são estranhas. Reunidos os participantes, ninguém fala. Há um longo, longo silêncio. (Os pianistas, antes de iniciar o concerto, diante do piano, ficam assentados em silêncio, como se estivessem orando. Não rezando. Reza é falatório para não ouvir. Orando. Abrindo vazios de silêncio. Expulsando todas as idéias estranhas. Também para se tocar piano é preciso não ter filosofia nenhuma.

Todos em silêncio, à espera do pensamento essencial. Aí, de repente, alguém fala. Curto. Todos ouvem. Terminada a fala, novo silêncio. Falar logo em seguida seria um grande desrespeito. Pois o outro falou os seus pensamentos, pensamentos que julgava essenciais. Sendo dele, os pensamentos não são meus. São-me estranhos. Comida que é preciso digerir. Digerir leva tempo. É preciso tempo para entender o que o outro falou. Se falo logo a seguir são duas as possibilidades. Primeira: "Fiquei em silêncio só por delicadeza. Na verdade, não ouvi o que você falou. Enquanto você falava eu pensava nas coisas que eu iria falar quando você terminasse sua(tola) fala. Falo como se você não tivesse falado". Segunda: "Ouvi o que você falou. Mas isso que você falou como novidade eu já pensei há muito tempo. É coisa velha para mim. Tanto que nem preciso pensar sobre o que você falou". Em ambos os casos estou chamando o outro de tolo. O que é pior que uma bofetada. O longo silêncio quer dizer: "Estou ponderando cuidadosamente tudo aquilo que você falou". E assim vai a reunião.

Há grupos religiosos cuja liturgia consiste de silêncio. Faz alguns anos passei uma semana num mosteiro na Suíça, Grand Champs. Eu e algumas outras pessoas ali estávamos para, juntos, escrever um livro. Era uma antiga fazenda. Velhas construções, não me esqueço da água no chafariz onde as pombas vinham beber. Havia uma disciplina de silêncio, não total, mas de uma fala mínima. O que me deu enorme prazer às refeições. Não tinha a obrigação de manter uma conversa com meus vizinhos de mesa. Podia comer pensando na comida. Também para comer é preciso não ter filosofia. Não ter obrigação de falar é uma felicidade. Mas logo fui informado de que parte da disciplina do mosteiro era participar da liturgia três vezes por dia: às 7 da manhã, ao meio-dia e às 6 da tarde. Estremeci de medo. Mas obedeci. O lugar sagrado era um velho celeiro, todo de madeira, teto muito alto.

Escuro. Haviam aberto buracos na madeira, ali colocando vidros de várias cores. Era uma atmosfera de luz mortiça, iluminado por algumas velas sobre o altar, uma mesa simples com um ícone oriental de Cristo. Uns poucos bancos arranjados em U definiam um amplo espaço vazio, no centro, onde quem quisesse podia se assentar numa almofada, sobre um tapete. Cheguei alguns minutos antes da hora marcada. Era um grande silêncio. Muito frio, nuvens escuras cobriam o céu e corriam, levadas por um vento impetuoso que descia dos Alpes. A força do vento era tanta que o velho celeiro torcia e rangia, como se fosse um navio de madeira num mar agitado. O vento batia nas macieiras nuas do pomar e o barulho era como o de ondas que se quebram.

Estranhei. Os suíços são sempre pontuais. A liturgia não começava. E ninguém tomava providências. Todos continuavam do mesmo jeito, sem nada fazer. Ninguém que se levantasse para dizer: Meus irmãos, vamos cantar o hino...

Cinco minutos, dez, quinze. Só depois de vinte minutos é que eu, estúpido, percebi que tudo já se iniciara vinte minutos antes. As pessoas estavam lá para se alimentar de silêncio. E eu comecei a me alimentar de silêncio também. Não basta o silêncio de fora. É preciso silêncio dentro. Ausência de pensamentos. E aí, quando se faz o silêncio dentro, a gente começa a ouvir coisas que não ouvia. Eu comecei a ouvir.

Fernando Pessoa conhecia a experiência, e se referia a algo que se ouve nos interstícios das palavras, no lugar onde não há palavras.
E música, melodia que não havia e que quando ouvida nos faz chorar.
A música acontece no silêncio. É preciso que todos os ruídos cessem.

No silêncio, abrem-se as portas de um mundo encantado que mora em nós - como no poema de Mallarmé, A catedral submersa, que Debussy musicou. A alma é uma catedral submersa. No fundo do mar - quem faz mergulho sabe - a boca fica fechada. Somos todos olhos e ouvidos. Me veio agora a idéia de que, talvez, essa seja a essência da experiência religiosa - quando ficamos mudos, sem fala. Aí, livres dos ruídos do falatório e dos saberes da filosofia, ouvimos a melodia que não havia, que de tão linda nos faz chorar.

Para mim Deus é isto: a beleza que se ouve no silêncio. Daí a importância de saber ouvir os outros: a beleza mora lá também. Comunhão é quando a beleza do outro e a beleza da gente se juntam num contraponto.

Rubem Alves

PS: Este texto me foi encaminhado por um professor essa semana... Achei de boa valia...

15 de set. de 2007

PARTIDO, PARTIDO, É DAS TRABALHADORAS!!!

O III Congresso do PT se desenhava, na tirada dos delegados nos estados, para ser aquele em que o endireitamento das resoluções políticas do partido seria inevitável, vide o tamanho das correntes do campo ex-majoritário, que elegeram a maioria dos quase mil delegados da etapa nacional.

A extrema frouxidão e atonia política da Secretaria Nacional de Mulheres, cujos fóruns e debates são sistematicamente esvaziados e a relação com os coletivos estaduais é quase que inexistente, episódica e residual, podem explicar parte da falta de comprometimento do conjunto do PT em pautar a questão da mulher, tendo como um grave sintoma a incipiente parcela da delegação composta de mulheres petistas no III Congresso.

As delegadas petistas representaram nada mais que 18, 58% da delegação geral à Etapa Nacional do III Congresso do Partido dos Trabalhadores. Uma vergonhosa realidade tantos anos após a aprovação das políticas afirmativas no partido, cuja cota mínima de 30% de mulheres nos fóruns e espaços de direção está contida.

A articulação entre as mulheres do PT, através do seu Coletivo Nacional, também mostrava ir pelo mesmo caminho. Isso porque a proposta de resolução encaminhada pela Secretária, para ser debatida e consensuada entre as forças políticas existentes, mais parecia um texto de consultoria, de caráter estritamente eleitoral e de defesa cega da SPM/PR e do Governo Lula. Um balanço do Governo sobre as Políticas para mulheres, construída pelo próprio governo.

Mas, seja no que diz respeito ao Partido, sua concepção e funcionamento, quanto no debate do socialismo e os posicionamentos sobre temas como o Plebiscito da Vale do Rio Doce, a Reforma Agrária e o Aborto, o fato é que o PT reafirmou seu caráter de partido de esquerda, socialista e aliado de primeira mão dos movimentos sociais. O panorama que estava previsto, de recuo programático e um quê de conservadorismo foi surpreendido por importantes avanços para o partido.

A tentativa inicial de construir uma resolução que avançasse no debate político sobre o papel das mulheres no PT, que reiterasse o comprometimento do partido com as bandeiras de luta históricas do movimento de mulheres e feminista e estabelecesse a unidade interna em uma única resolução parecia não vingar.

O sentimento do conjunto das mulheres do PT, militantes oriundas do movimento de mulheres e feminista, era o mesmo: Seria inadmissível um retrocesso em relação às vitórias das mulheres ao longo dos 27 anos de vida do PT.

O tema "Legalização do Aborto", componente do texto construído, era, entre as representações das tendências internas do PT que compõem a secretaria de mulheres e fazem esse debate no dia a dia, necessário resultado das lutas das mulheres dentro e fora do partido. Estávamos todas confiantes, exibindo um necessário adesivo no peito: "Não há socialismo sem feminismo".

Já era sabido que este é um tema necessariamente polêmico na sociedade e, por que não o seria, dentro do PT, partido que abriga, além de militantes do movimento de mulheres e feministas, defensores da famigerada “Comissão Pró-"Vida", contra o Aborto”, mesmo contra as resoluções partidárias que os impedem de compô-la.

Sabíamos que não podíamos recuar um milímetro. O que não sabíamos era se, com a conjuntura adversa, de maioria de delegados homens e das fatias mais conservadoras do PT, conseguiríamos avançar dentro do partido em relação a esse tema que veio a ser causa de um dos momentos de maior tensão e disputa nos debates do Congresso petista.

O texto foi modificado novamente para tentar encontrar alguma mediação. A idéia foi tirar a expressão (forte para alguns) "legalização do aborto" e transformá-la, mantendo o conteúdo, em "descriminalização do aborto, com a regulamentação do atendimento de todos os casos no serviço público". Naturalmente, não houve consenso.

Entre defesas entusiasmadas, manifestações e ações diretas de apoio e repúdio de parte a parte, a boa política e o voto confirmaram o que o conjunto do III Congresso estava se tornando: Um fórum que tem como resultados, a necessária guinada à esquerda do PT, a reafirmação do compromisso do partido com a luta do povo, o resgate da relação com os movimentos sociais e a reafirmação do socialismo como horizonte estratégico do Partido dos Trabalhadores. Quer dizer, dos trabalhadores e trabalhadoras.

Apesar de forças historicamente comprometidas com a organização das mulheres no PT ficarem a margem desde o início, como no caso da DS, que além de não aceitar tentar melhorar o rebaixado texto proposto pela UL, se eximiu do debate, desde o início, não tendo nem quem colocar para defender a proposta infinitamente melhor que a primeira, que foi a voto em plenário e venceu.

A Articulação de Esquerda se colocou como agente de todo o processo. Coletamos assinaturas, articulamos as forças, ganhamos gente, aparecemos e defendemos a proposta em plenário, na tentativa, ao final concretizada, de trazer o texto à luz de uma resolução congressual mais avançada, que reafirma o socialismo e o feminismo e coloca o PT, definitivamente, como o partido que reconhece o aborto como um problema de classe, de assistência pública e de garantia do livre arbítrio feminino.

Reconhece que não cabe a mais ninguém, a não ser a própria mulher, dona do seu corpo e do seu direito de ir e vir, decidir se vai ou não manter uma gravidez indesejada. Cabe a sociedade não julgá-la por isso e cabe ao Estado, que é laico, garantir condições adequadas de assistir a mulher em sua decisão. Seja a de manter a gravidez, seja o de interrompê-la.

Uma vitória do PT, uma vitória das mulheres do PT. Mulheres estas que demonstraram, também naquele fim de semana, que estão, para além de vivas, presentes na vida política do nosso partido, certas de que momentos como esses são para nos fazer mais fortes, determinadas. A nossa luta é dobrada e é também dentro do PT.

Essa força deverá estar presente no PED. É preciso garantir a participação efetiva dos mínimos 30% de companheiras nas chapas municipais, estaduais e nacionais. É fundamental pautarmos o debate sobre qual direção desejamos para o partido e qual visão que ela possui sobre a participação das mulheres na vida político-partidária.

Uma amostra interessante pode ser observarmos como cada tendência, agrupamento ou militante isolado se comporta em momentos como esse, em que é imprescindível ter posicionamento e cada posição é importante na definição do lado que o partido deve pender. Nesse congresso, o PT pendeu mais à esquerda, apesar dos prognósticos.
A articulação de esquerda teve papel fundamental nesse resultado. Reafirmamos em nossas ações no congresso a responsabilidade com a luta das mulheres e com a construção de um PT capaz de ser porta-voz dos trabalhadores e trabalhadoras desse país. Precisamos relembrar a cada dia, a cada congresso, encontro e passeata: na luta pela emancipação de toda a classe trabalhadora é preciso emancipar homens e mulheres. A força das mulheres é a força do nosso partido.

Não há socialismo sem feminismo!

Isadora Salomão
Coletivo Estadual de Mulheres do PT/BA
Coletivo de Mulheres Dorcelina Folador

14 de set. de 2007

MORRE UMA LUTADORA

A nossa luta para mudar o mundo e a vida das mulheres é todo dia. Mas há dias em que essa luta fica mais difícil. Hoje é um deles. Faleceu na noite do dia 10 de setembro a companheira Maria Ednalva Bezerra, 47 anos, militante sindical feminista e atual Secretaria Nacional de Mulheres da Central Única dos Trabalhadores – CUT e parte da executiva da Marcha Mundial das Mulheres.

Sua trajetória militante mostra-nos, que a construção de autonomia das mulheres é possível; é uma luta diária e deve ser travada em todos os espaços. Por onde passou, mostrou-se uma mulher aguerrida, lutadora e determinada em construir um novo mundo para mulheres e homens, sem machismo, sem pobreza, sem violência, sem guerra, um mundo de igualdade e respeito. A sua, e nossa utopia, continuará mobilizando nossas lutas para fortalecer um feminismo militante como ação política das mulheres, fonte de energia que nos permite continuar acreditando que juntas mudaremos o mundo e vida de todas as mulheres.

Continuaremos sua luta, que também é nossa.

Saudades,
Marcha Mundial das Mulheres