15 de jan. de 2011

2011, O ANO MULHER

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> Reduzir preconceito de gênero não é tarefa fácil para Dilma
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> Marcelo Semer
> De São Paulo (SP)
> Dia primeiro de janeiro de 2011, o país assistiu a cena até então inédita:
> uma
> mulher recebendo a faixa de presidente da República e passando em revista
> as
> tropas militares.
> Enquanto o Brasil parava para ouvir o discurso de Dilma, parte dos
> twitteiros
> que acompanhavam plugados à cerimônia, se deliciava fazendo comentários
> irônicos e maldosos sobre a primeira vice-dama, Marcela Temer.
> Loira, jovem e ex-miss, a esposa de Michel Temer virou imediatamente um
> trending
> topic.
> Foi chamada de paquita, diminuída a seus atributos físicos e acusada de
> dar o
> golpe do baú no marido poderoso e provecto. Tudo baseado na consolidação
> de um
> enorme estereótipo: diante da diferença de idade que supera quatro décadas
> e
> uma distância descomunal de poder, influência e cultura, só poderia mesmo
> haver
> interesses.
> Essa é uma pequena mostra do quanto Dilma deve sofrer para romper as
> barreiras
> atávicas do preconceito de gênero, ainda impregnadas na sociedade.
> Se não fosse justamente pela superação dos estereótipos, aliás, Dilma
> jamais
> teria chegado aonde chegou.
> Mulher. Divorciada. Guerrilheira. Ex-prisioneira. Quem diria que seria
> eleita
> para ser a chefe das Forças Armadas?
> Superar estereótipos é o primeiro passo para romper preconceitos.
> O exemplo de Lula mostrou, todavia, como sua tarefa não será fácil.
> O país aprendeu a conviver com a sapiência de um iletrado retirante, mas
> os
> preconceitos regionais e o ódio de classe não se esvaziaram tão
> facilmente. A
> avalanche das "mensagens assassinas", twitteiros implorando por um
> "atirador de
> elite" na posse, só comprova o resultado alcançado pelo terrorismo
> eleitoral.
> Dilma sabe dos obstáculos a vencer e é por este motivo que iniciou seu
> discurso
> enfatizando o caráter histórico do momento que o país vivia, fazendo-se de
> exemplo para "que todas as mulheres brasileiras sintam o orgulho e a
> alegria de
> ser mulher".
> Em dois discursos recheados de assertivas e recados, não faltou uma
> lembrança
> emocionada a seus companheiros de luta contra a ditadura, que tombaram
> pelo
> caminho.
> Mais tarde, receberia pessoalmente suas ex-colegas de prisão. Não esqueceu
> das
> "adversidades mais extremas infligidas a quem teve a ousadia de enfrentar
> o
> arbítrio". Não se arrependeu da luta, justificando-se nas palavras de
> Guimarães
> Rosa: a vida sempre nos cobra coragem.
> Mas, mulher, adverte Dilma, não é só coragem, é também carinho.
> É essa mulher, misto de coragem e carinho, que seu exemplo espera libertar
> do
> jugo de uma perene discriminação.
> Discriminação que torna desiguais as oportunidades do mercado de trabalho,
> que
> funda a ideia de submissão, e que avoluma diariamente vítimas de violência
> doméstica, encontradas nos registros de agressões corriqueiras e no longo
> histórico de crimes ditos passionais, movidos na verdade por demonstrações
> explícitas de poder, orgulho e vaidade masculinas.
> Temos um longo caminho pela frente na construção da igualdade de gênero.
> Nossos tribunais de justiça são predominantemente masculinos, porque os
> cargos
> de juiz foram explícita ou implicitamente interditados às mulheres durante
> décadas. Houve quem justificasse o fato com as intempéries da menstruação
> e
> quem estipulasse que professora era o limite máximo para a vida
> profissional da
> mulher.
> Nas guerras ou ditaduras, as mulheres além dos suplícios dos derrotados,
> ainda
> sofrem com freqüência violências sexuais, que simbolicamente representam a
> submissão que a vitória militar quer afirmar.
> Mulheres são maioria nas visitas semanais de presos. Mas quando elas
> próprias
> são encarceradas, as filas nas penitenciárias se esvaziam. Com muito
> sofrimento
> e demora, sua luta é para garantir os direitos já conferidos a presos
> homens.
> Sem esquecer as incontáveis mulheres de triplas jornadas, discriminadas
> pela
> condição quase servil de dona de casa, que se obrigam a cumular com suas
> tarefas profissionais e maternas.
> Que a posse de Dilma ilumine esse horizonte ainda lúgubre de preconceito,
> no
> qual os estereótipos da mulher burra, submissa e instável, predominam na
> sociedade.
> E que, enfim, possamos aprender, com as mulheres, a respeitar sua
> igualdade e
> suas diferenças.
> Pois, como ensina Boaventura de Sousa Santos, elas, mais do que ninguém
> podem
> dizer: "Temos o direito a sermos iguais quando a diferença nos
> inferioriza.
> Temos o direito a sermos diferentes quando a igualdade nos
> descaracteriza".
> Façamos, assim, de 2011, um ano mulher.



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13 de jan. de 2011

PRESIDENTA, SIM!

Marcos Bagno 11 de janeiro de 2011 às 10:58h



Se uma mulher e seu cachorro estão atravessando a rua e um motorista embriagado atinge essa senhora e seu cão, o que vamos encontrar no noticiário é o seguinte: “Mulher e cachorro são atropelados por motorista bêbado”. Não é impressionante? Basta um cachorro para fazer sumir a especificidade feminina de uma mulher e jogá-la dentro da forma supostamente “neutra” do masculino. Se alguém tem um filho e oito filhas, vai dizer que tem nove filhos. Quer dizer que a língua é machista? Não, a língua não é machista, porque a língua não existe: o que existe são falantes da língua, gente de carne e osso que determina os destinos do idioma. E como os destinos do idioma, e da sociedade, têm sido determinados desde a pré-história pelos homens, não admira que a marca desse predomínio masculino tenha sido inscrustada na gramática das línguas.

Somente no século XX as mulheres puderam começar a lutar por seus direitos e a exigir, inclusive, que fossem adotadas formas novas em diferentes línguas para acabar com a discriminação multimilenar. Em francês, as profissões, que sempre tiveram forma exclusivamente masculina, passaram a ter seu correspondente feminino, principalmente no francês do Canadá, país incomparavelmente mais democrático e moderno do que a França. Em muitas sociedades desapareceu a distinção entre “senhorita” e “senhora”, já que nunca houve forma específica para o homem não casado, como se o casamento fosse o destino único e possível para todas as mulheres. É claro que isso não aconteceu em todo o mundo, e muitos judeus continuam hoje em dia a rezar a oração que diz “obrigado, Senhor, por eu não ter nascido mulher”.

Agora que temos uma mulher na presidência da República, e não o tucano com cara de vampiro que se tornou o apóstolo da direita mais conservadora, vemos que o Brasil ainda está longe da feminização da língua ocorrida em outros lugares. Dilma Rousseff adotou a forma presidenta, oficializou essa forma em todas as instâncias do governo e deixou claro que é assim que deseja ser chamada. Mas o que faz a nossa “grande imprensa”? Por decisão própria, com raríssimas exceções, como CartaCapital, decide usar única e exclusivamente presidente. E chovem as perguntas das pessoas que têm preguiça de abrir um dicionário ou uma boa gramática: é certo ou é errado? Os dicionários e as gramáticas trazem, preto no branco, a forma presidenta. Mas ainda que não trouxessem, ela estaria perfeitamente de acordo com as regras de formação de palavras da língua.

Assim procederam os chilenos com a presidenta Bachelet, os nicaraguenses com a presidenta Violeta Chamorro, assim procedem os argentinos com a presidenta Cristina K. e os costarricenses com a presidenta Laura Chinchilla Miranda. Mas aqui no Brasil, a “grande mídia” se recusa terminantemente a reconhecer que uma mulher na presidência é um fato extraordinário e que, justamente por isso, merece ser designado por uma forma marcadamente distinta, que é presidenta. O bobo-alegre que desorienta a Folha de S.Paulo em questões de língua declarou que a forma presidenta ia causar “estranheza nos leitores”. Desde quando ele conhece a opinião de todos os leitores do jornal? E por que causaria estranheza aos leitores se aos eleitores não causou estranheza votar na presidenta?

Como diria nosso herói Macunaíma: “Ai, que preguiça…” Mas de uma coisa eu tenho sérias desconfianças: se fosse uma candidata do PSDB que tivesse sido eleita e pedisse para ser chamada de presidenta, a nossa “grande mídia” conservadora decerto não hesitaria em atender a essa solicitação. Ou quem sabe até mesmo a candidata verde por fora e azul por dentro, defensora de tantas ideias retrógradas, seria agraciada com esse obséquio se o pedisse. Estranheza? Nenhuma, diante do que essa mesma imprensa fez durante a campanha. É a exasperação da mídia, umbilicalmente ligada às camadas dominantes, que tenta, nem que seja por um simples -e no lugar de um -a, continuar sua torpe missão de desinformação e distorção da opinião pública.

Marcos Bagno é professor de Linguística na Universidade de Brasília




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